Castigos corporais a filhos menores
Justiça

Nunca Sem Um AdvogadoCastigos corporais a filhos menores

Crime de ofensa à integridade física ou poder – dever de correção?

Maria do Carmo Reis
Cédula Profissional: 3716P

Durante muito tempo, tornou-se comum aceitar como legítimos os castigos corporais infligidos pelos pais aos filhos menores, como medida corretiva na educação destes.

Ainda nos dias de hoje, para um grande número de pessoas, se não mesmo a maioria, é considerado normal que um pai ou uma mãe deem uma(s) sapatada(s) ao filho ou filha que se portou mal.

Mas será tal comportamento legítimo?

Perante situações/comportamentos em concreto do filho com que os pais discordam, até onde é que a lei lhes permite ir no caso dos castigos corporais?

No mundo ocidental moderno tomou-se consciência de que as crianças são o recurso mais importante de um país pelo que, desde 1959, data da promulgação da Declaração Universal dos Direitos da Criança (DUDC), que as matérias relacionadas com as crianças e jovens têm vindo a merecer grande atenção por parte dos profissionais e académicos.

Assistimos a uma alteração de perspetivação da família que evoluiu de um modelo autoritário para um modelo democrático, onde a criança deixou de ser vista como um objeto de direitos e passou a ser vista como um verdadeiro sujeito de direitos.

Com a evolução dos tempos e mutações sociais, a ONU (Organização das Nações Unidas) sentiu necessidade de atualizar e adaptar tal documento (DUDC) e, em 1989 é aprovada a Convenção dos Direitos da Criança (CDC), que constitui o tratado de direitos humanos internacionais mais amplamente ratificado de sempre e que já não se limita a ser uma mera declaração de princípios gerais, antes vincula juridicamente os Estados que a ela aderem, após a ratificarem. Portugal foi um dos primeiros países a fazê-lo tendo ratificado tal Convenção, em 21 de setembro de 1990 e, dessa forma, a ela se vinculou.

Segundo tal Convenção, a proibição de todos e quaisquer castigos corporais a crianças encontra-se expressa, designadamente, nos artigos 19.º e 37.º. O que nos leva a concluir que, por força de tais disposições legais, também em Portugal é proibido aplicar castigos corporais a menores, por mais indeléveis que sejam e ainda que perpetrados pelos progenitores e/ou educadores num contexto correcional.

Como referido, Portugal ratificou a CDC em 21 de setembro de 1990, mas só em 1999, com a Lei n.º 147/99, de 1 de setembro – Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo – e com a Lei nº 166/99, de 14 de setembro – Lei Tutelar Educativa – é que o reconhecimento da criança e jovem como sujeito de direitos passou a ter consagração legislativa.

No entanto, embora Portugal tenha ratificado a CDC e se tenha por isso obrigado a cumpri-la e a fazê-la cumprir, não investiu devidamente, como lhe competia, nesse sentido, quer adaptando/alterando a sua legislação, quer implementando medidas sociais, políticas, económicas e sobretudo de consciencialização tendentes à sua aplicação prática.

Por essa razão é que o Estado português tem levado vários ‘puxões de orelhas’ e, no seu último relatório, o Comité Europeu para os Direitos da Criança voltou a instar Portugal a alterar a sua legislação e garantir a “completa proibição dos castigos corporais por muito leves que sejam, seja nas famílias, na lei ou na prática”.

No plano legal – que é o que versamos neste artigo – temos atualmente que: no n.º 1 do artigo 69.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), está consagrado o direito de proteção do Estado às crianças “contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições”.

Por sua vez, com a reforma de 1977 do Código Civil (CC) eliminou-se do conteúdo das responsabilidades parentais o poder dos pais castigarem moderadamente os filhos, mas não ficou expressamente consignada a sua proibição.

No plano criminal, mantém-se no artigo 143.º do Código Penal a tipificação do crime de ofensa à integridade física simples, que diz ser crime a ofensa do corpo ou da saúde de outra pessoa, sem fazer qualquer alusão ou distinção a uma eventual relação de parentesco entre o agente e a vítima.

Podemos concluir que não só não há, em Portugal, um instrumento legal especificamente dedicado aos direitos da criança, como a legislação portuguesa continua a estar longe de cumprir e fazer cumprir o estipulado na CDC.

E enquanto tal não acontece, as decisões dos Tribunais Portugueses são maioritariamente no sentido de entenderem que não é de excluir, de todo, a aplicação de castigos físicos a filhos menores como medida corretiva e, na prática, na falta de critérios legais que auxiliem a delimitar a fronteira, deve cada situação ser analisada caso a caso, com todos os circunstancialismos a ela atinentes.

É urgente pois que se definam critérios interpretativos, metodológicos e não só, de aplicação prática que orientem os ‘pais perdidos’ e os profissionais da área.

É igualmente urgente alterar a lei, concretizando no Código Civil (CC) o conteúdo das responsabilidades parentais, bem como, a nível penal, deve ser criada uma norma de exceção ao artigo 143.º do Código Penal (CP) que, em caso de castigo corporal a filhos menores, exclua a ilicitude do agente, quando verificados os seguintes pressupostos:1.º Subjetivos: legitimidade do agente; finalidade/intenção educativa por parte do agente; 2.º Objetivos: proporcional; necessário e adequado.

A minha opinião (e a de alguns autores), no entanto, é que, mesmo com a implementação destas alterações legislativas como critérios orientadores, o Estado português só deixará de incumprir a CDC e a criança só será verdadeiramente valorizada e respeitada na sua dignidade como pessoa, quando se adequar o nosso ordenamento jurídico a tal Convenção, o que por sua vez só acontecerá quando for criada uma medida legislativa específica que consagre uma proibição, precisa e direita, dos castigos por forma a não cedermos aos costumes ou à cultura da população.

Só com leis específicas, adequadas e protetoras que impeçam qualquer tipo de castigos corporais, é que se poderá defender a inviolabilidade da integridade dos menores, enquanto seres vulneráveis.

Enquanto tal não acontecer, pese embora as obrigações e orientações internacionais no sentido de abolir todo e qualquer castigo físico, não se poderá exigir dos pais e educadores um cumprimento comportamental consentâneo com tais orientações, já que nem a lei portuguesa o proíbe expressamente, nem a consciência social condena.

* Colaboração com a delegação de Santa Maria da Feira da Ordem dos Advogados

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Nélson Costa

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DIRETOR | Jornalista de formação e por paixão. Curioso, meticuloso, bom ouvinte, observador até das próprias opiniões.
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