Voluntários ensaiam para protagonizar viagem à Batalha de Aljubarrota
Reportagem

Voluntários ensaiam para protagonizar viagem à Batalha de Aljubarrota

80 voluntários, homens e mulheres, treinam para o espetáculo militar de grande formato que vai marcar as 12 noites da Viagem Medieval em Terra de Santa Maria, de 2 a 13 de agosto. Os ensaios decorrem no palco onde será recriada a grande batalha que opôs frente a frente as tropas de D. João I e D. Juan de Castela, as margens do rio Cáster. Os voluntários mostram-se empenhados em assumir o papel de guerreiro, num ano em que Alex Barone estreia-se como encenador. O jovem de 32 anos deu o seu cunho pessoal ao espetáculo, que irá privilegiar a massa humana em detrimento da cenografia  

O trono português estava vazio. O país estava politicamente dividido, a economia de rastos e o clima vivido era de tensão política e social. A morte do rei D. Fernando, em 1383, despoletou uma crise nacional, que se prolongou cerca de dois anos. A única filha legitima, D. Beatriz, estava casada com o rei de Castela e apesar das cláusulas matrimoniais garantirem a separação dos reinos, D. Juan I, o castelhano, planeava tomar o trono.

Em plena Idade Média, o cerco espanhol fecha-se, mas D. João I, Mestre de Avis, preparava a defesa de Portugal. Os vários episódios de disputa do reino culminaram na batalha travada na tarde de 14 de agosto de 1385, que será recriada na XXVI edição da Viagem Medieval em Terra de Santa Maria. “O nosso propósito é fazer um retrato do que foi a Batalha de Aljubarrota, que é o momento alto do reinado do Mestre de Avis. Para chegar à batalha, há uma série de quadros que explicam o contexto político e social que se estava a viver em Portugal e na Europa: a aliança portuguesa com os ingleses; a castelhana com os franceses; ou a questão dos dois Papas”, começa por contextualizar o encenador Alex Barone, acrescentando, logo de seguida, outros elementos à intriga, referentes ao vivido em território nacional: “havia um trono por ocupar e um reino vizinho pronto para se ocupar do território português. O Mestre de Avis foi elevado a rei e Castela incendiou uma série de cidades e cercou Lisboa. Seguiram-se uma data de batalhas que culminaram na de Aljubarrota”.

A batalha representa a afirmação da independência de Portugal, que mesmo em desvantagem numérica no número de cavaleiros, liderados pelo estratega D. Nuno Álvares Pereira, conseguiram vencer o poderoso vizinho castelhano. “Toda a intriga, os pressupostos políticos, militares e sociais, assim como o grande momento, a batalha”, serão retratados diariamente no espetáculo de grande formato da Viagem Medieval de 2023.

19 mulheres e 59 homens, dos 16 aos 66 anos, treinam, há mais de um mês, para assumir a pele de guerreiros no campo de batalha. Os ensaios iniciaram no Europarque, em Espargo, onde receberam formação de esgrima e expressão teatral, no entanto, no início deste mês, já passaram para as margens do rio Cáster. Apenas 28 participaram em edições anteriores.

Dos novatos aos experientes, fascínio não falta

Kauanny Oliveira tem 20 anos, é brasileira e vive em Arada, Ovar. Chegou ao país em 2019, já após a Viagem Medieval se ter realizado e por força da Covid-19 só conseguiu vivenciar o espírito medieval feirense, pela primeira vez, o ano passado. Porém, bastou uma visita para se deixar arrebatar pelo ambiente, os espetáculos e a gastronomia, o que a levou, na altura, a comentar com o pai que gostaria de participar. Este ano, quando este viu a notícia de abertura das inscrições para voluntários, não hesitou em enviar o link à filha, que foi uma das selecionadas. “Não tenho formação em teatro, mas gosto bastante da área. Achei a oportunidade interessante e embora não tivesse conhecimento sobre a época, acabei por fazer umas breves pesquisas. Já estamos em ensaios há cerca de um mês e tem corrido tudo muito bem”, diz Kauanny, não mostrando dificuldades em conciliar os horários dos ensaios com os da faculdade. Nem a assumir o papel de homem de armas. “Inicialmente, achei que por ser mulher podia sentir uma maior dificuldade e até ser conflituoso para os homens. Mas temos várias mulheres, já fiz par com os dois géneros nos combates de esgrima e não há problemas. A integração está a ser muito fácil”, revela a jovem, desdobrando-se em elogios aos formadores. “Começámos por ter formação de esgrima e atualmente os ensaios iniciam-se pelo combate e depois focam-se na parte teatral. Os formadores estão sempre muito atentos e dispostos a explicarem-nos os movimentos. Corrigem-nos com frequência e se tivermos alguma dúvida, esclarecem, para que consigamos encaixar tudo o melhor possível e encenar uma recriação perfeita”, almeja.

Na ótica da voluntária, os ensaios não podiam estar a correr melhor e o espírito vivido no seio do grupo só facilita. “Estamos todos em sintonia. Somos uma grande família e pelo que tenho visto nos ensaios, o espetáculo de grande formato será tremendo. Há mais voluntários do que nos anos anteriores e como haverá assim um maior número de envolvidos no campo de batalha, o público pode esperar algo grandioso”.

No campo de batalha desde 2009

Júlio Pereira é voluntário assíduo dos grandes formatos militares da Viagem Medieval. Desde 2009 que marca presença no campo de batalha. Nunca faltou a uma ‘chamada’ do evento. Admirador da história portuguesa, viu no papel de voluntário uma oportunidade “para assemelhar o vivido pelos portugueses à época, ficando a conhecer alguns dos seus hábitos”.

“Em 2009, vi no Jornal de Notícias que estavam a pedir pessoas para fazerem um espetáculo de grande formato e achei curioso. Como gosto muito da época medieval e da viagem, inscrevi-me. Fiquei até hoje”, recorda a ligação ao evento Júlio Pereira, natural de S. João de Ver.

Volvidos mais de dez anos, a experiência tem facilitado o processo, concedendo-lhe “mais habilidade e à vontade” no espetáculo militar. O nervosismo sentido nos primeiros anos já deu lugar à tranquilidade e o traquejo já lhe permite dar umas dicas aos mais novos. Apesar de “alguns ainda estarem muito ‘verdes’, sobretudo na esgrima”, atesta que “já há quem apresente boas coreografias”, sendo que as várias nacionalidades e o intervalo de idades não têm atrapalhado os ensaios.

Ao fim de 14 anos como voluntário, Júlio Pereira consegue traçar “uma evolução” nas encenações. “Nos primeiros três anos, os combates eram mais intensos. Os espetáculos eram mais longos e havia muito tempo de esgrima. Desde 2011 que se tornaram mais teatrais e acho mais interessante esta expressividade. É como se o público, assim, estivesse a assistir a um filme em tempo real”, julga Júlio Pereira, de 54 anos, não esquecendo o inusitado número de mulheres. “Houve edições em que não havia mulheres, outras que só tinham uma ou duas e este ano há muitas, o que é bom”.

O fascínio pela época medieval e a vontade de fazer parte da recriação fazem esquecer as implicações que os ensaios têm na rotina diária do voluntário. Natural de S. João de Ver, desloca-se três vezes por semana à sede do Concelho para os ensaios, que passam a diários com o aproximar do início da viagem. “Não é difícil conciliar com a vida profissional e familiar. Embora tenha uma filha pequena, com sete anos, a minha esposa fica com ela”, diz, acrescentando que os 12 dias de Idade Média são mais exigentes. “O espetáculo exige muito em termos físicos. O equipamento é pesado e há pouca margem de tempo entre cenas para mudanças de roupa ou de cenários”.

A entrada ao trabalho às dez da manhã contrabalança o esforço. “Admito que entrar só às dez horas é uma vantagem porque posso dormir até mais tarde e descansar”.

Otimista para a recriação da Batalha Real, Júlio Pereira promete continuar a marcar presença nos espetáculos de grande formato durante largos anos e, quem sabe, fazer-se acompanhar da filha, que já mostrou vontade de participar.

“Não têm de ser talentosos, apenas estar predispostos a fazer um bom trabalho”

Formado em Cinema e Audiovisual, o encenador do espetáculo militar de grande formato, Alex Barone, já passou pelo papel de voluntário, em 2009, tendo posteriormente integrado uma companhia local, que trabalhou no espetáculo, durante quatro anos. Aos 32 anos, regressa ao evento que bem conhece, para assumir a encenação. “Ainda estou a digerir o regresso. A Viagem Medieval era um capítulo que tinha fechado, mas tinha muitos amigos no meio e reconheci muitas caras, inclusive de voluntários a quem dei formação em 2012, que tinham 18 anos e agora até já são pais”, comenta.

O responsável pela montagem do espetáculo tem-se debatido com vários desafios, de índole distinta, mas garante que a experiência tem sido “muito gratificante”. “Habitualmente, as produções que faço são com profissionais ou pessoas com experiência. Neste caso, não. O objetivo da Feira Viva é trabalhar com a comunidade, ou seja, com voluntários de todas as idades, que não conhecem o período medieval e que não têm experiência em combate e interpretação. Somos obrigados a formá-los, o que é um grande desafio, mas simultaneamente muito gratificante”, explica o encenador, abordando os “outros desafios inerentes a um espetáculo desta escala”. “Estão cerca de 120 pessoas envolvidas no espetáculo e muitas delas armadas. Apesar das espadas não terem lâminas, são equipamentos considerados perigosos e não é fácil explicar às pessoas que têm de ser expressivas, mas dentro das regras de segurança. A Batalha de Aljubarrota envolve muitos recursos e conjugá-los com a comunidade, equipas artísticas e profissionais, é um desafio. Mas um bom desafio”, garante.

Alex Barone admite que os voluntários não se candidatam cientes das dificuldades, no entanto, são precisamente os obstáculos que os motivam. “Muitos chegam pelo fascínio que advém das séries e dos filmes. Não estão à espera de ter formação de esgrima, tiro com arco, expressão dramática… Mas quando percebem essa dificuldade, isso motiva-os. O grau de dificuldade anima-os para fazerem um bom trabalho”.

De cada um, o encenador só cobra “empenho e entrega”. “Não têm de ser talentosos, apenas estar predispostos a fazer um bom trabalho. E nesse sentido tem corrido muito bem”.

As 19 mulheres a assumir o papel de guerreiros no campo de batalha também não tem sido um problema para o encenador ou para as próprias voluntárias. “Olho para a Batalha Real como um espetáculo e não como uma recriação fidedigna, logo acho que todos têm direito de o integrar, seja mulher ou homem. Só têm de estar predispostos à carga física de esgrima e essa era a dúvida inicial. Mas a prova de que não tem sido um problema é que não há mulheres no grupo de armas com maiores dificuldades. Temos problemas bem maiores, como a falta de coordenação de alguns homens”, revela.

Espetáculo vai privilegiar a massa humana

Em 2023, sob a autoria de Alex Barone, o elenco será mais expressivo do que em edições anteriores. “O trabalho é da minha autoria e tenho um tipo de linguagem diferente. Interessa-me trabalhar com massa humana e não com grandes cenografias. Um espetáculo com uma boa dose de conflito e drama, não apenas uma mostra de combates”, revela e levanta a ponta do véu sobre o espetáculo. “Será um espetáculo dinâmico, que retrata um momento fulcral na história de Portugal. Terá muita entrega e, se tudo correr bem, vai fazer repensar a ideia do patriotismo e de nacionalidade, presente na altura medieval, que agora está esbatida e que é importante salvaguardar”.

A XXVI Viagem Medieval em Terra de Santa Maria realiza-se de 2 a 13 de agosto, no centro histórico de Santa Maria da Feira e vai recriar episódios marcantes do reinado de D. João I, Mestre de Avis, com destaque para a Batalha de Aljubarrota.

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Márcia Soares
JORNALISTA | Licenciada em Ciências da Comunicação. A ouvir e partilhar as emoções vividas pelas gentes da nossa terra desde 2019.
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