Uma arte em extinção
Filhos da Terra

Uma arte em extinção

Caminhar por uma avenida atento às pedras que pisa pode assumir-se uma descoberta. Da história às técnicas, as calçadas espelham as marcas deixadas pelos calceteiros, uma profissão antiga, outrora muito valorizada, e que Abel Fonseca aprendeu com o pai e praticou durante 50 anos. Assentou pedrinha em dezenas de ruas pela região e arredores, revelando aptidão pelo ofício que exige cuidado, paciência e boa preparação física, já que é necessário estar várias horas na mesma posição

A calçada portuguesa é uma das imagens de marca do país, mas o seu futuro não se afigura risonho. De uma profissão em risco a uma identidade que se tenta preservar, a dureza do trabalho acaba por afugentar os jovens.

Abel Fonseca iniciou a arte com duas décadas de vida. Todos os homens da família sabiam manejar o martelo e ele acabou por ser um dos últimos da linhagem a dominar o trabalho de assentar pedrinha. Em pequeno, o futuro não apontava para que fosse calceteiro, mas o falecimento da avó mudou o rumo da sua vida profissional. Abel Fonseca é o mais velho de nove irmãos e foi criado com os avós na lavoura. “Quando nasci, no lugar de Reguengo, a 30 de setembro de 1931, os meus falecidos pais começaram a construir casa noutro local da freguesia. Mudaram-se para lá e deixaram-me ficar em casa dos meus avôs, onde vivi até aos 18 anos”, contextualiza, lembrando que não era admirador da escola primária, em boa parte por causa do professor. “Só fiz a escola até ao 3.º ano. O professor era ruim, batia-nos muito, andava sempre com as orelhas em ferida”, revela. A má relação com o docente e a preferência pelo ar livre ao invés das quatro paredes da sala de aula levaram-no a trabalhar nos campos e a “fazer carretos”. Nas décadas de 40 e 50 os carros de bois, por serem um dos meios mais simples e primitivos, eram utilizados para o transporte de cargas (maioritariamente produtos agrícolas), e Abel Fonseca encarregava-se de encher as carroças com madeira para ‘dirigir’ os bois até às fábricas de serração, onde comercializava o material. “Ganhava 35 escudos por transporte”, dá nota.

Quando completou 18 anos, já sem a avó no seio familiar, decidiu ir bater à porta dos progenitores. Junto do pai e dos tios, aprendeu tudo sobre a profissão de calceteiro. “A primeira vez que fui trabalhar como calceteiro foi para Espinho. Comecei por pavimentar a estrada que liga Espinho a Santa Maria da Feira”. A partir de então, perdeu a conta ao número de pavimentações de ruas que operou.

Por todo o lado a assentar pedra

“Chegávamos ao local, mediamos a largura da rua, colocávamos um fio ao centro e, a partir daí, começávamos a fazer as fiadas. Usávamos areia e depois cobríamos com os paralelos, sendo que as pedras tinham de encaixar umas nas outras, de forma ordenada. Mal assentávamos, outro empregado vinha apiloar [bater com força com o pilão para acondicionar os paralelos]”, relata as funções do ofício, que exige cuidado, paciência e boa preparação física, já que é preciso conseguir ficar longas horas em posição de agachamento.

Neste campo, o ‘aquecimento’ era feito pelo caminho. “Só depois de me casar, aos 27 anos, é que comprei a primeira motorizada. Até então, ia para todo o lado de bicicleta. Não tinha outro meio de transporte”, diz o calceteiro, que partia a pedalar desde Guisande até Ovar, Estarreja, Espinho, Vila Nova de Gaia…

Um trajeto que atualmente demora alguns minutos, outrora levava horas. Por caminhos tortuosos e sem a comodidade de um automóvel, muitos trabalhadores acabavam por regressar a casa só ao final de uns dias. “Quando era longe, não vinha a casa, dormia no chão. Uma vez em Espinho, na vila de Anta, andávamos a fazer as valetas e dormimos todos numa barraca montada no meio de um campo agrícola. Tínhamos uma máquina a petróleo para cozinhar do lado de fora e à noite regressávamos à tenda feita com folhedo. Depois metíamos um cobertor no chão e dormíamos. A sorte é que por acaso, dessa vez, até estava calor, porque foi em setembro”, conta.

O calceteiro deixou a sua assinatura em dezenas de obras pela região, mas também fora dela. “Cheguei a fazer a avenida central de Vila Nova de Paiva, em Viseu. A obra demorou três meses e só vim a casa uma vez por mês. Mas eram tempos alegres. Cozinhávamos cabrito no tacho, bebíamos um copinho de vinho da terra e sabia que era uma maravilha”, recorda os tempos de convívio nas obras com os outros companheiros de profissão.

“Cheguei a assentar três mil pedras por dia”

Quando se casou, o pai de sete filhos deixou de trabalhar por conta própria e ingressou durante 12 anos numa firma e posteriormente mais 27 noutra empresa de construção civil e obras públicas, em Gaia, onde permaneceu até à idade da reforma.

O trabalho nunca faltou. “Como as estradas eram todas em paralelos, cheguei a assentar três mil pedras num só dia. Trabalhava em média dez horas por dia”, diz, assegurando que era “uma arte em que se recebia muito bem”. “Era uma profissão muito valorizada, porque tínhamos muito trabalho. Ganhávamos 50 a 55 escudos por dia, enquanto um pedreiro ganhava cerca de 30”, compara.

Apesar de auferir um bom salário, Abel Fonseca confessa que era “ganancioso” e que queria sempre mais. “Ganhava bem como calceteiro, mas a ganância fazia-me querer sempre mais. A minha mulher olhava pelos filhos, lavava a roupa no tanque, ajudava nos campos e quando chegava a casa era a minha vez de continuar. Como gostava da terra, porque fui criado no campo, tinha porcos, galinhas, vacas, bois… Os bois até comprava pequenos e ensinava-os a trabalhar, porque tudo o que transportava era com o gado de casa”, revela, acrescentando que os restantes animais, comprava-os pequenos e ao final de um ano vendia-os. “Também cultivava feijão, milho, batatas, hortaliças… Nesta zona rural, a agricultura era um meio de subsistência”, adianta.

Fim da linhagem calceteira

Segundo Abel Fonseca, a profissão só é suportável para quem tiver um enorme gosto. Por exemplo, os seus filhos ainda aprenderam a arte, mas nenhum quis dar-lhe continuidade. “Dos sete filhos, cinco são rapazes. Quando eram pequenos e precisava de ajuda, ainda me vinham ‘dar uma mãozinha’. Mas nenhum quis seguir a arte. É desgastante”, confessa, pese embora a dureza não o tenha travado, nem depois de se ter reformado.

“Aos 67 anos, vieram oferecer-me emprego. Apesar da idade, ainda fui três anos, porque passava o meu tempo e ganhava mais umas ‘coroas’. Nesse período, ensinei alguns miúdos a trabalhar, mas eles não queriam nada. Os jovens de hoje em dia não se querem cansar muito”, julga, apontando a dureza do trabalho e o surgimento do alcatrão como as principais razões da profissão estar em vias de extinção. “Ainda há alguns calceteiros pela zona, mas não é como era. As empresas de construção civil têm calceteiros, porque as estradas são em alcatrão, mas as valetas são em paralelo. No entanto, é uma coisa mínima, chegam dois ou três para fazer o trabalho. Agora é tudo tapete [de alcatrão]”, diz, fundamentando a aposta com a segurança e a comodidade para os automobilistas. “Já ouvi um especialista a dizer que um paralelo rompia um centímetro em cem anos. Mas quando está rompido, sobretudo quando chove, é muito perigoso, porque [em caso de despiste] não seguramos mais o carro”, afiança, dando um último exemplo de um episódio antigo que lhe exigiu atenção redobrada na estrada. “Antigamente a Nacional N.º 1 era toda em paralelos e num ano em que nevou, em fevereiro, demorei duas horas a chegar de motorizada a Miramar. E porquê? Se fosse de força e tivesse de travar em cima dos paralelos, só parava no chão”.

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Márcia Soares
JORNALISTA | Licenciada em Ciências da Comunicação. A ouvir e partilhar as emoções vividas pelas gentes da nossa terra desde 2019.
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