O Senhor Regedor (para memória futura)
Opinião

O Senhor Regedor (para memória futura)

Bem ciente das suas prerrogativas e porque ninguém se atreveria a contestar a sua autoridade, ele achava-se o verdadeiro “rei-da-giga”: atrevesse-se alguém a atravessar-se-lhe no caminho e o caldo saltava pela panela fora. E foi assim que ele conquistou o respeito dos vizinhos, que é como quem diz o medo e a subserviência de todos os fregueses locais.

Bem ciente de que era a cachopa mais desejada da freguesia – pudera, com aquele corpo moldado por um escultor clássico e um olhar que parecia verter lágrimas de tão simultaneamente brilhante e transparente – ela não aceitou namoro quando o Orlando, rapaz cujo corpo teria sido moldado pelo mesmo artista ou por um seu discípulo, trabalhador esforçado e respeitado pelos novos e velhos do lugar, se atreveu a aproximar-se pedindo a sua anuência com promessa de casamento à mistura; a mesma recusa ouviu o Serafim, que até já tinha casa posta, que os pais tinham ajudado a pagar com o proveito da venda dos pinheiros abatidos na gândara. Ela sentia-se demasiado especial para se entregar a um qualquer zé-ninguém-ou-coisa-pequena que se arrojasse.

E foi assim que ela acabou casada com o Marcolino da Estrada, já com uns quarenta e muitos anos, mas famoso regressado do Brasil que denodadamente se esforçava por uma comenda que tinha tentado comprar do lado de lá do Atlântico sem sucesso. E o casamento aconteceu, com festa de dois dias, confeitos arremessados aos garotos à saída da capela, foguetes até fazer doer os ouvidos, jantar para a maior parte da freguesia, mais foguetes e almoço no dia seguinte que “É uma pena estragar tanta comida”. Ninguém soube se foram felizes e por quanto tempo mas, já no dia do casamento, o Senhor Regedor, mais ou menos da idade do recém-casado, se achou no direito de reivindicar o seu estatuto e a noiva foi por ele requisitada quando, depois dos espíritos libertados pelo álcool do espumante entretanto consumido, se chegou ao momento do tradicional bailarico com que se encerravam as bodas.

Pouco tempo depois, em particular na taberna da aldeia, começou a falar-se do Senhor Regedor e das suas andanças com a mulher do Marcolino, mas este fazia de conta que não sentia as agulhadas que lhe eram dirigidas e lá ia meneando a testa, cada vez mais pesada, como podia.

Um ano e pouco depois o Marcolino da Estrada, que fora ao Brasil voltar a tentar resolver aquela coisa da comenda que tanto dinheirinho já lhe tinha custado, foi surpreendido pela ordem de prisão ouvida da boca de um sujeito sinistro, de fato e chapéu pretos, a quem foi conduzido quando chegou ao cais de Alcântara. As duas noites seguintes passou-as nos calabouços da António Maria Cardoso, mas acabou por ser transferido para a Antero de Quental, em Coimbra porque, sobre o Marcolino, não caía suspeita de ter quaisquer ligações ao Partido Comunista, apenas a denúncia do Senhor Regedor. Nunca se soube como foi tratado pela PIDE pois da boca daquele paz-de-alma nunca se ouviu uma queixa, nem da PIDE nem da mulher, que já era mais do Senhor Regedor do que dele.

Anos depois, após o 25 de Abril, o Senhor Regedor sentou-se na minha frente. Na Antero de Quental tinha deixado de funcionar a PIDE para passar a ser a sede em Coimbra da sua Comissão de Extinção e eu estava lá, a convite de um capitão vindo do Quartel-General da Região Militar do Centro. O Senhor Regedor já não o era; era uma figura curvada ao peso da idade (e da consciência?), de cabelos poucos e brancos e de olhar pousado nos pés, transpirando medo, subserviência e humildade. De entre outras, à pergunta sobre o que o motivara a fazer a denúncia à PIDE de que o Marcolino era um perigoso subversivo, o ex-Senhor Regedor começou por responder que devia haver engano, que nunca tinha tido nada contra o Marcolino, de quem era muito amigo… e que até visitava muitas vezes a sua casa – facto do qual também nós estávamos cientes.

O camarada de armas e ofício que me acompanhava perdeu a paciência e retirou do dossier um documento que pousou na frente do ex-Senhor Regedor com um murro na mesa e um “Deixe-se de merdas e diga-me o que é isto!?”. O ex-Senhor Regedor balbuciou qualquer coisa imperceptível e o meu camarada, com o indicador em cima do documento, berrou um “Olha para aqui, sacana! Diz-me o que é isto!”.

O ex-Senhor Regedor tremeu, balbuciou, chorou, arrependeu-se… e acabou a confessar coisas inconfessáveis que me ocasionaram uma primeira e inesquecível experiência sobre a verdadeira natureza humana.

Até então sempre tinha odiado os bufos, mais do que os próprios pides; desde então vivo na incerteza de se os devo odiar ou se devo ter pena deles. Afinal… é só a inveja o que os motiva.

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Victor Sismeiro

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COLUNISTA
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