“Aqui joga-se para ganhar. Sempre!”
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“Aqui joga-se para ganhar. Sempre!”

Rui Moreira. Treinador de Voleibol na AJM/FC Porto

Rui Miguel de Sousa Moreira, 37 anos, Licenciado em Educação Física pela Universidade da Maia. Filho de José Moreira, um dos maiores jogadores portugueses de todos os tempos e fundador do clube sediado em Nogueira da Regedoura, recordou os tempos em que acompanhava o pai nos treinos, ficando a observar, ou a brincar com o irmão numa rede ao lado.

Agora, é nele que estão os holofotes. Há cinco anos como timoneiro de alto rendimento, iniciou o percurso com a equipa sénior da AJM, passando pelo AVC de Famalicão e, na época transata, rumando à Suíça e à Grécia. Foi o primeiro treinador a conseguir um feito histórico para o voleibol português: a passagem aos ‘quartos’ numa competição europeia.

CF – Como começou o gosto pela modalidade?

Rui Moreira – Venho de uma família de voleibolistas. O meu pai jogou durante muitos anos, foi treinador e o ‘bichinho’ acabou por começar por aí. Desde muito cedo ia para o pavilhão com ele, não com o intuito de jogar voleibol. Ele ia para os treinos e levava-me, como levava o meu irmão. Praticamente passava, dependendo dos dias, as tardes, as manhãs, e os fins-de-semana no pavilhão a apanhar bolas ou a jogar numa rede ao lado. Então acabou por surgir dessa forma, apesar de ter praticado muitos outros desportos. Quando era jovem, acabei por experimentar um pouco de tudo – estive na natação, na patinagem, joguei futebol e estive também na ginástica. Acabou por ser um trajeto natural porque fui experimentando as outras modalidades com as quais às vezes me identificava, mas depois a presença do voleibol acabava por ser um mais forte, porque estava constantemente em contacto com a modalidade. Não porque fosse obrigado, porque não era forçado, mas acabava por acompanhar o meu pai. Estava presente nos treinos e nos jogos.

A decisão da passagem de atleta para treinador deveu-se a algo específico?

Deixei de jogar muito cedo. Comecei a jogar com 10, 11 anos e ‘mais a sério’, se pudermos dizer assim, joguei até aos 27, 28 anos. A partir dali continuei a jogar mais dois, três anos, mas num registo onde punha a minha outra atividade profissional, ou de treinador ou de professor, à frente da carreira de atleta, muito por culpa da carreira de treinador. O meu pai na altura foi convidado para trabalhar num clube, que por acaso até é da região, o Clube Desportivo de Fiães. Estava na Académica de Espinho, foi convidado para ir para o Fiães e, é convidado para treinar uma equipa e para coordenar todo o voleibol do clube. Pediu-me ajuda, convidou-me para ir com ele, para ir ajudando a estruturar o clube, a desenvolver o clube e confesso que, na altura, não tinha experiência nenhuma como treinador; tinha uma base em Educação Física, porque era licenciado, dava aulas, tinha uma experiência enquanto atleta sénior e é engraçado que eu até à altura sempre disse que tinha a ambição de ser treinador, mas só quando deixasse de jogar. Só que efetivamente quando o meu pai me faz essa proposta, aquilo na altura, não é em jeito de brincadeira, porque não foi encarado dessa forma, mas o contexto no momento do clube, no início, não ia exigir pelo menos, um dispêndio horário; depois tem o investimento pessoal que as pessoas colocam nas coisas, mas em termos de carga horária, não era uma coisa muito grande: havia poucas equipas, poucos atletas. No entanto, nesse primeiro ano, fizemos um trabalho, nós – a equipa toda de treinadores e do clube, fizemos um trabalho excelente e o clube cresceu significativamente no número de atletas. Eu lembro-me perfeitamente de começarmos no minivoleibol com 10, 15 atletas e no final do ano acabarmos perto de 100. Entretanto, chegou a altura, em que a minha motivação, o meu gosto, o meu interesse de ser treinador estava-se a começar a sobrepor ao meu gosto de ser atleta. Estava a dedicar-me muito mais à minha tarefa, ao meu papel de treinador do que estava a dedicar ao papel de atleta e muitas vezes quando estava em situações de conflito, ou decidia pelo meu papel de treinador, ou se não acontecesse, porque o ser atleta exige a parte presencial, ninguém pode fazer por mim, mas aquilo era um choque emocional, se o pudemos dizer dessa forma. Acho que, aos bocadinhos, fui largando.

Quais são as principais diferenças que encontra nos escalões de formação para os escalões mais elevados?

Há duas coisas. Há escalões de formação e escalões de formação. É diferente treinar uma equipa de infantis e uma equipa de juniores: pelo nível técnico, tático, físico, mas, pela maturidade das jogadoras, que acaba por ter influência na abordagem metodológica. Na equipa sénior também acaba por acontecer isso. No entanto, acho que acima de tudo, seniores é uma gestão humana, uma gestão de expectativas, de carreiras. É gerir a atleta e a pessoa. Lógico que, enquanto equipa técnica, temos também de desenvolver um trabalho físico, técnico e tático, mas, acima de tudo, é essa gestão que deve ser realizada. Até porque, no nosso contexto, a atleta trabalha de uma forma profissional, é a sua profissão. A atleta da formação não. É estudante, muitas vezes pratica a modalidade pelo gosto pelo desporto, ou porque as amigas também o fazem, ou até pela ambição de chegar a um alto nível. Posto isto, é diferente. A exigência é diferente, a cobrança tem de ser diferente. Acima de tudo, é essa a grande diferença.

E de uma equipa masculina para uma equipa feminina? Que diferenças aponta?

Físico, claramente. Não quero de maneira alguma ser depreciativo com o género feminino, mas, é sabido que o Homem fisicamente, na teoria, é mais disponível, mais talentoso fisicamente; e, entra também, a questão do emocional. Da mesma forma que o Homem é mais físico e, na grande maioria das vezes, resolve os problemas do jogo com a força, a Mulher é mais emocional. Esta questão, aliada a um bocadinho menos de capacidade física, obriga a que os treinos e jogos sejam mais pensados. No feminino obriga-nos a trabalhar muito mais, especificamente, o ataque, de uma forma mais isolada e até a desmontar o gesto, dando recursos às atletas; no masculino, não sinto essa necessidade. Primeiro, pelo facto de resolverem muitos dos problemas à base da força; segundo, porque, de uma forma geral e até natural, eles gostam mais de atacar e de procurar as soluções por eles, sem o recurso ao treinador. Em contraste, em termos defensivos, o feminino tem mais sistemas, obriga a uma certa plasticidade tática que no masculino não é possível, devido à força. É um bocadinho isso. É essa diferença do ataque e da defesa que acaba por estar um bocadinho relacionada e faz com que dentro do mesmo desporto pareça que seja um jogo diferente.

O Rui apresenta uma postura forte e determinada no desporto. Vê isso como um fator importante no seu perfil enquanto treinador de elite?

Acima de tudo temos de ser genuínos, porque, o desporto também é emocional. Isto não é só uma questão de “chega ali, pega na mochila, e vai para casa”. Há um contexto emocional, e, mais, ou menos exagerado, acaba sempre por pesar no desenvolvimento das atletas, no envolvimento do público no jogo e, acho que nós temos que envolver as pessoas nisso. Acho que poderia ser um problema, se a minha postura no jogo fosse diferente da que é em treino. Efetivamente é a minha forma de estar. Confesso que é o ponto onde eu, de ano para ano, tento adaptar e moldar. No entanto, também pesa muito o perfil de atletas que temos; há atletas que podem não lidar bem com esta postura, mas, existem outras que precisam. É acima de tudo a capacidade de nos adaptarmos ao contexto onde estamos. Não acho que seja algo que prejudique a minha equipa; não sei se me traz alguma vantagem em relação a atletas ou treinadores adversários, mas, honestamente, não estou preocupado com isso e nem é essa a minha intenção. Sou alguém exigente, tenho consciência que sou duro em alguns contextos, bastante emotivo tanto no treino como no jogo, mas, nesta altura do campeonato, as atletas já estão habituadas. Esta postura tem coisas muito positivas, certamente, mas também terá pontos menos positivos. Mais uma vez, o equilíbrio aqui é o importante.

A AJM/FC Porto é a primeira equipa portuguesa a conseguir um marco histórico em competições europeias. No entanto, não foi praticamente noticiado. Isso incomoda-o ou já lhe é indiferente?

Toda a gente gosta de ver o seu trabalho reconhecido. Quem disser que não é relevante, está a mentir. Depois, podemos valorizar, mais ou menos, mas toda a gente gosta. Todos gostariam de semana após semana, conquista após conquista, ver o seu trabalho espelhado nas redes sociais, nos meios de comunicação social, na imprensa, na televisão, mas acho que também temos que entender isto: vivemos num país de futebol e não é crítica, é o que é; o nosso país, como muitos outros, é um país de futebol. Acho que a grande diferença é que noutros países ‘de futebol’ dão, também visibilidade às modalidades. Contudo, o que é grave é que estamos numa era em que se fala muito de desporto feminino, da igualdade dos direitos da mulher, do seu relevo no desporto e, atenção, eu não estou a dizer que se deva dar mais destaque ao feminino do que ao masculino. Acho é que tem de existir um equilíbrio. Temos uma equipa portuguesa, de voleibol feminino, que acabou de atingir um feito histórico, considerando a fase em que chegamos na competição, e foram muitos poucos os meios de comunicação que fizeram disso notícia.

“Quase temos acesso ao tamanho da sapatilha da atleta”

Existe alguma diferença na preparação de um treino para o campeonato ou para uma competição europeia?

Poderia dizer o conhecimento da equipa adversária porque, como é normal, nós conhecemos melhor as equipas do campeonato nacional do que as estrangeiras. Com as do campeonato, ou jogamos contra elas, ou vamos a um pavilhão ‘aqui ao lado’ e conseguimos vê-las a jogar, mas atualmente, com a quantidade de informação disponível, quase que temos acesso ao tamanho da sapatilha que a atleta calça. Acho que existem dois fatores distintos. O primeiro é o tempo para preparar, e, atenção, isto não é uma queixa, gostava eu de continuar a ter esse ‘problema’, era sinal de que continuávamos em prova, mas o facto de jogarmos competições europeias, a meio da semana, dá-nos menos tempo para preparar os jogos. O tempo não estica e não consigo ter as atletas a treinarem oito horas consecutivas. O segundo é a adaptação a um estilo de jogo diferente, porque em Portugal, as jogadoras não mudam muito. Mudam de clube, mas são as mesmas. Passando para o estrangeiro, já temos estilos de jogo completamente diferentes, mais rápidos, mais altos. Acho que essencialmente é por aí.

A AJM/FC Porto é composta por um plantel com várias caras estrangeiras. Vê isso como um ‘trunfo’ nas competições europeias?

Vejo como um ‘trunfo’ na melhoria da qualidade da minha equipa, do campeonato, que, acaba por se traduzir na melhoria da nossa capacidade de discutir todas as competições, incluindo as europeias. A atleta não tem de ser portuguesa, brasileira ou americana. A atleta tem de ser boa. Nós queremos boas jogadoras, boas atletas, bons seres humanos, porque, com este quadro que eu lhe pintei à bocado nós também precisamos de pessoas que cumpram o projeto, que queiram estar cá, que entendam que há algumas sacrifícios que têm de ser feitos. O campeonato feminino é muito diferente hoje do que era há cinco anos atrás. Nos últimos cinco anos, excetuando o último, treinei feminino em Portugal, e o campeonato está muito diferente. Há duas diferenças: o aparecimento do Porto, Benfica e Sporting na 1.ª Divisão, associado a outros clubes que também têm futebol e que isso traz adeptos, mediatismo, televisões, patrocínios; em suma, mais visibilidade. E, é com essa visibilidade, com um pouco mais de estrutura financeira e com todo esse suporte que os clubes de futebol nos conseguem dar, conseguimos trazer melhores atletas estrangeiras, porque as portuguesas são as mesmas. Se olharmos para o campeonato, 90% da boa atleta portuguesa de hoje, são as mesmas de há 20 anos atrás. O campeonato subiu porque começamos a ter cada vez mais capacidade de ter mais e melhores estrangeiras, e isso subiu o nível do campeonato. E consecutivamente, sobe o nível da atleta portuguesa; a atleta nacional, como os clubes investem mais em estrangeiras, começam a caminhar para a profissionalização, melhorando a situação financeira delas, permitir ter mais disponibilidade para pensar no voleibol, treinar mais, com horários melhores, onde conseguem descansar mais e alimentarem-se melhor. Em suma, torná-las melhores jogadoras. Claro que não acontece de hoje para amanhã, é um processo que leva tempo. A condição que os clubes conseguiram criar de ter mais atletas estrangeiras, para o voleibol nacional, foi espetacular. O voleibol feminino não tinha visibilidade nenhuma, tinha uma qualidade muito baixa, as atletas portuguesas eram as mesmas do que são agora, ou seja, elas também melhoraram, mas, eram só elas. Hoje o nível é melhor. Toda a gente ganha com o facto de termos muitas atletas estrangeiras. No nosso caso, tenho efetivamente consciência de que temos muitas, mas não porque queremos. Vamos sempre à atleta nacional, porque somos um clube português, de Portugal, e queremos ter a atleta portuguesa. Mas primeiro queremos ter boas atletas, acima de tudo. O nicho da atleta portuguesa que acaba por entrar no nosso mercado já é mais reduzido porque, efetivamente, só queremos algumas das melhores, onde  muitas vezes, nós não as conseguimos; ou porque não conseguimos chegar, financeiramente, ao que a atleta quer; ou porque a atleta só vem na condição de jogar. Houve um comodismo durante estes anos todos que faz com que hoje seja difícil mudar essa mentalidade, onde, a atleta estrangeira, também nos vem ajudar a fazer isso.

Recentemente saiu de Portugal, tendo uma experiência numa equipa na Suíça. Que diferenças sentiu para o praticado cá em Portugal?

A Suíça é um país com dinheiro, que permite contratar melhores jogadoras. Isto é a lei da vida. Se eu tenho muito dinheiro, consigo contratar melhores atletas. Efetivamente as estrangeiras do campeonato são boas, em detrimento das suíças, que têm um nível muito baixo, porque, como culturalmente é um país com muito dinheiro, onde todas elas têm emprego, onde começam a trabalhar muito cedo; uma cidadã suíça aos 16 anos está a trabalhar porque têm um sistema de criação de postos de trabalho, onde, a pessoa saí do ensino secundário e em vez de ter a opção de ir para a universidade, entra para o mercado de trabalho, através de um estágio profissional bem renumerado, onde sabe que, quase de certeza, aquele lugar será dela. E com isto falamos de valores salariais muito altos. Não é por acaso que o país é conhecido pelos altos níveis de emigração. Tudo isto, faz com que, a atleta suíça não invista no desporto. Joga voleibol porque quer praticar desporto, joga desde jovem e gosta da modalidade, de onde tem afinidade com o clube e as colegas, mas não quer dar o salto. Porquê? Porque tem um patamar desportivo onde, provavelmente, se fosse remunerada, de forma justa, porque, volto a frisar, o campeonato paga acima do normal, iam ganhar dez vezes menos. A acrescer a isto, a limitação do número de estrangeiras, onde os clubes eram obrigados a jogar com duas suíças em campo e, consequentemente, tinham de ter outras no plantel; depois, o país é dividido em cantões e as regras vão mudando. Isto faz com que o campeonato tenha estrangeiras muito boas numa equipa, medianas na outra onde pagam o mesmo que pagariam pelas muito boas e, depois a atleta nacional tem todo este contexto e a grande diferença desportiva acaba por ser essa: fruto de uma economia muito forte, a vertente desportiva acaba por sofrer.

Quais as expectativas para o futuro?

Desportivamente temos o objetivo de conquistar a Taça e o Campeonato. Primeiro porque na AJM/FC Porto joga-se sempre para ganhar. Todos os jogos, todas as competições, nem que seja ao berlinde, jogamos sempre para ganhar. É algo que está implícito na nossa forma de ser, na nossa forma de trabalhar, associado ao rigor e emotividade e, como é lógico é algo que está no ADN da Academia José Moreira, mas principalmente do FC Porto. Queremos revalidar o título, ou seja, queremos ser tricampeões, queremos reconquistar a Taça de Portugal, que vencemos há três anos e que nos últimos dois nos tem escapado; e, com essas duas conquistas, conseguir o triplete que no clube ainda não foi conseguido.

Um sonho?

Eu gosto mais de olhar como objetivos e metas. Efetivamente é importante termos os sonhos, porque dá-nos a ambição e a ilusão de algo que gostaríamos de atingir, mas depois temos de os transformar em metas. Eu considero-me uma pessoa muito ambiciosa, que trabalha e que se dedica bastante, como certamente muitos outros treinadores ou profissionais nas diferentes áreas. Com isto, gostava muito, profissionalmente, na minha carreira, de conseguir chegar, enquanto treinador, a um dos campeonatos ‘Top 5’ a nível mundial. Itália, Polónia, Turquia, Superliga Brasileira, Alemanha, poder chegar a um destes campeonatos era um sonho, sim. Logicamente, num bom contexto, permitindo estar ali a lutar por títulos. Gostava também um dia de participar nos Jogos Olímpicos; acho que é uma coisa que marca a vida d qualquer pessoa que esteja num contexto desportivo. Já tive a felicidade de estar num Campeonato da Europa, com a Seleção Feminina, onde foi uma experiência fantástica, mas, certamente que a questão dos Jogos Olímpicos seria algo marcante. Depois, de uma forma geral, tenho sempre o objetivo que, de ano para ano, as minhas atletas terminem a época e reconheçam que acabaram o ano melhor do que o começaram. Acima de tudo, é isto.

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